sábado, junho 25, 2005

ART&rial IV

(ART&rial I, ART&rial II, ART&rial III)

Em 1527 o exército de Carlos V, I de Espanha, conquista Roma e assim começa o fim do Renascimento, bem como novo ímpeto ao ataque da Reforma da Igreja. A arte iria mudar, mas como, se era então perfeita? Michelangelo, Ticciano, Leonardo. Quem lhes poderia suceder? Quem os poderia superar se tinham mesmo ultrapassado a beleza e a harmonia da Arte Grega e Romana? É deste modo que surge o Maneirismo, na torrente copista dos grandes e inexcedíveis mestres. E é por isso que nesta fase se vêem algumas obras quase cómicas, como a representação de cenas bíblicas onde a profusão de figuras parece uma equipa atlética. Cartoccia, Invenzione, Maniera.
Largamente desprezado, o Maneirismo só é cunhado e reconhecido depois da célebre e corajosa exposição impulsionada por André Chastel, historiador de arte. A exibição em 1965, no Louvre, permitiu reabilitar algumas das obras e autores desta época. Uma boa altura para elevar a Segunda Renascença já que, perante a profusão e o estridente dos quadros maneiristas, do seu modo auto-consciente e justaposto, é difícil manter a calma…Duas salas com pintores maneiristas no AI não têm bancos. Noutra sala há assento, sempre gelado, onde as cores bizarras e os músculos cinzelados e impacientes se sentem solitários.
Gosto da descrição que Delacroix faz do Maneirismo no seu diário: “tudo o que pintam é músculos e poses, nas quais a ciência, ao contrário da opinião geral, não é de todo um factor dominante…Desconheciam todos os sentimentos humanos e todas as paixões. Quando faziam um braço ou uma perna, parece que pensavam apenas naquele braço ou naquela perna e que nem sequer remotamente consideravam a forma como se relacionavam com a acção da figura à qual pertenciam, e muito menos à acção do quadro como um todo…E aí está o seu grande mérito; trazer o sentimento do grande e do terrível, mesmo a um membro isolado.”
Mas nem todos os discípulos se acomodaram a esta fasquia e se resignaram à retorção e às posições fanfarronas. Tintoretto e El Greco eram insubordinados, geniais e comovem mais do que agradam. Domenikos Theotokopoulos, veio da Grécia, onde a arte jazia ao modo bizantino, de imagens apenas remotamente humanas. Depois de uma passagem por Veneza estabeleceu-se em Todelo, fugindo aos cânones e aos críticos. O primeiro quadro de El Greco com que me deparei foi no princípio da minha adolescência, numa visita ao Museu do Prado. Embora insistissem comigo para apreciar a sua audácia, os corpos da Adoração dos Pastores pareciam-me torpes e a sombra sinistra. A suspensão das figuras desequilibrava a minha apreciação e os impressionistas, esses sim, pareciam-me gentis e longe da turbulência então impossível de sustentar.
Um dos melhores trabalhos de El Greco exibido nos EUA (ou mesmo fora de Espanha) está no AI. Terra e Céu unidos por um laborioso código de gestos e modos, posturas e meneios que tão bem caracterizam a tensão religiosa na obra de El Greco. A manipulação e o ardor dos seus quadros encontram aqui expressão maior, no túmulo aberto, na hospitalidade do círculo dos anjos, no ritmo articulado entre mundos. Maria, elevada num quarto de lua crescente, pura, toca ainda na Terra com os mantos volumosos que o pintor preferia. Agradava à Contra Reforma…e sim, aqui figura S. Tiago segurando o seu livro.





Não há vez que visite o Museu e que não pare aqui. Há sempre mais um detalhe, na figura serpentinata, na eloquência das mãos, no fervor do encontro. Sem gravidade, porque os longos e singulares corpos de El Greco, pairando longe da verdade anatómica, não me assustam como outrora. Barroco, o período que se segue, e que na verdade significa grotesco ou absurdo, trará outros excessos.