sexta-feira, junho 10, 2005

ART&rial II


Ás vezes apetecia-me que certas salas de alguns museus tivessem música. Ao vivo, de preferência, para não destoar da respiração das obras. Mas, enfim, já me contentava com o rarefeito. Perante pintura medieval é quando mais sinto falta dessa concorrência, talvez porque tudo me pareça um serial de marionetas. Museus com fiadas de épocas afilam sempre o contraste…sobe-se e desce-se entre galerias, ri-se ou chora-se com os destinos da humanidade, o génio move-nos ou distancia-nos. Pombas, cordeiros e rodas. A Bíblia ilustrada: Mateus, Marcos, Lucas e João.
E não toca, mas eu escuto Gregório a ditar as regras do cântico. O fundo sempre liso e dourado, a natureza omissa, a perspectiva ingénua, a lição em latim e os corpos regressando à austeridade, perdendo o latejar que Roma pensava para sempre ter conquistado. Durante mil anos, assim fica a carne, suprimida pela salvação da alma impoluta. A obsessão pelo amestrar do corpo indómito mais óbvia (mas se calhar não a mais eficaz).
Não se vê, mas está sempre lá: imbecillitas sexus.
Prefiro Pedro, quase-humano. Entre Maria de azul e João Baptista feito deserto, fico próxima de Pedro, que falha e regressa. As chaves foram bem entregues.
Ainda assim, paro por pouco tempo, tropeço na Flandres e não cobiço quem fica a olhar para trás. A primeira ressaca medieval é de Dieric Bouts. À Mater Dolorosa é devolvida a expressão, a intimidade e a tranquilidade. O óleo permite outros gestos e o detalhe é digno desse nome. Há quem se comova, há pele que ilumina e roupa que se engelha.

Não é quem pagou o quadro que aparece figurado, mas o mestre do atelier transformado em autoria.
Já sentada, penso como gostava de ir a Bourges. O quadro de Gerard David mostra-a ao fundo, algo difusa e ocupada. Ainda bem que existe Antuérpia. Assim posso imaginar que reencontrarei a cidade do séc. XV, numa viagem que não farei, no comboio da minha infância.
Que pálido que está Jesus, que minúcia no vestido de Madalena e que juventude eterna, a de João. A simetria busca a utopia e, arrependida, segura agora, na hora da sua morte, a mirra profetizada na natividade.
É a renascença, claro.