ART&rial III
A perspectiva é uma das grandes novidades no séc. XV. Oferece outra riqueza tanto quanto realismo. Contudo, o que mais me agrada é sentir que o observador está lá, dentro do quadro e fazendo-o depender do seu olhar. O ângulo já não é apenas divino, a Terra (palavra sempre antropocêntrica) gira em torno do Sol e o homem é sujeito tanto quanto objecto.
Tenho pena que a Virgem de Botticelli não esteja ao lado da Virgem de Corregio. Coloco-as aqui, próximas, satisfazendo o meu capricho e fiel a esse humanismo da visão.
Em Botticelli descobre-se o culminar do misticismo religioso florentino, uma ternura cuja serenidade me desfaz, a mestria da linha que denuncia a estrutura do rosto e lança o volume dos corpos. Mas nem a Virgem toca no Menino nem o Menino toca na Virgem. Em ambos um pano violeta, urdidura real, que os distingue e anuncia.
Corregio traz o sfumato ao centro da obra. Dispensa a precisão do desenho de Botticelli, brinca com a luz e a sombra, faz do triângulo o princípio. Mais etéreo, dá à Virgem azul um dos verdes mais resplandecentes que conheci, escusando as letras da esperança. Allegri era o seu verdadeiro nome.
Quando nos tornamos velhos clientes podemos descobrir a novidade. A surpresa é filha dessa monotonia. Há umas semanas chegou um novo e belíssimo quadro, de Fra Bartolommeo, onde figura Savonarola. Encontro na sua expressão a Fogueira das Vaidades que criou e onde ele próprio ardeu.
Sim, da Alta Renascença, Ticcano é o que mais me enfeitiça. Veneza é um palco e os seus quadros dramáticos, como este onde Danae recebe a chuva de ouro de Zeus. Reparo nas cegonhas ao fundo, repousando sobre o lago, e fico um pouco mais. Ticciano teria gostado da contemplação, que nos prendesse a ênfase que abandona o desenho e encontra a cor, o erotismo, a poesis. Compreendo que Florença desdenhasse desta mitologia veneziana...
Uma encomenda de Filipe II de Espanha, fruto da amizade de seu pai, Carlos I, com Ticciano e revelando a elevação do estatuto do pintor, que passava a frequentar a corte, destino que só mais tarde bafejaria os músicos.
(nota: esta não a versão que está no AIC, não disponível on line)
Descartes estava quase a nascer e com ele nova incisão: res cogitan e res extensa, a razão soberana e o corpo máquina.
Mas imaginemos que ainda falta muito tempo, que nada nos obriga a descer as escadas para as galerias do Barroco, e que Danae, de 1554, encontra Shakespeare, escrevendo nessa mesma altura:
Time, force, and death
Do to this body what
Extremes you can,
But the strong base and
Building of my love
Is as the very centre of the
Earth,
Drawing all things to it.
(Troilus and Cressida, act. 4)
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