Sem coração
A capa do Público de hoje, que apresenta uma fotografia de corações humanos artificiais alinhados, lembrou-me um texto de Giovanni Papini (Gog).
“(…) Trezentos e setenta porcos foram sacrificados – e naturalmente vendidos a preços normais – e tenho agora, aqui, numa luminosa galeria (…), uma das colecções mais originais do Mundo. (…) em parteleiras de pinho, alinham-se cem frascos de boca larga onde palpitam cem corações de cor escura. Na solução que conserva a sua actividade muscular (…) os cem corações contraem-se com ritmo cansado e irregular, mas contínuo. Cem motores de carne trabalham, em vão, separados dos aparelhos que animavam.
(…) Apraz-me imaginar, seduzido pela semelhança, que possuo cem corações de homens, órgãos quentes e vivos, cem corações que sofreram, que gozaram, que conheceram a paralisia do medo e a aceleração do amor. São, agora, apenas um simulacro de vida; libertaram-se das criaturas que serviam, pulsam gratuitamente, para nada, para ninguém. Unicamente para me divertir, pois nunca pude tolerar os delíquios dos poetas e dos novelistas sobre o “coração”.
(…) As almas desvaneceram-se e este músculo enegrecido continua estupidamente a palpitar sobre o cristal, como se qualquer coisa de belo e de nobre correspondesse ainda às suas palpitações.
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