Muralha da China
Primeiro, e como não existiam registos de óbitos de chineses no nosso país, correram as mais diversas suspeitas sobre o que esta comunidade de imigrantes em Portugal -progressivamente mais significativa - fazia aos seus mortos. Note-se, desde já, que em 1991 existiam 356 chineses no país. Entre 2001 e 2004, as autorizações de permanência concedidas as chineses em Portugal foram 3913. E em 2004, as autorizações de residência somaram 5605. As estimativas apontam para a presença de, pelo menso, 16 mil chineses em Portugal.
Depois correram atoardas sobre a inexistência de caixotes do lixo à porta dos estabelecimentos comerciais chineses, implicando que uma enorme e bizarra reciclagem seria conduzida nos seus restaurantes e afins. Mais tarde, deu-se a inspecção alimentar a restaurantes chineses, cuja cobertura jornalística foi de tal ordem que deu origem a uma investigação pela Entidade Reguladora para a Comunicação Social. Agora corre o rumor que a comunidade chinesa sequestra pessoas nas suas lojas, para lhes retirar os órgãos, história que o DN procurou aclarar.
Essencialmente, trata-se de uma representação perigosa de uma comunidade étnica cuja presença em Portugal disparou rapidamente. Uma espécie de antropologia do barbarismo ou um orientalismo – na sua acepção mais negativa – frutos dessa presença mais numerosa, da falta de contacto com a comunidade de acolhimento, de importantes lacunas académicas sobre este grupo étnico e mesmo resultado de uma estratégia por parte da comunidade chinesa que parece passar mais pela inivizibilização do que pelos marcadores identitários (praticamente reduzidos aos espaços comerciais). Seja como for, a representação dos chineses residentes em Portugal enquanto sequestradores, homicidas e ladrões de órgãos, enquanto canibais ou imundos, que tem tido efeitos altamente nefastos sobre os seus negócios – para já – não podia ilustrar melhor a ideia medieval do selvagem diabólico, que tantas vezes serviu de base para a destruição e subjugação do outro. “Indígenas aberrantes” cuja alteridade é insuportável para muitos.
No momento actual, podemos dizer que a relação Oriente-Ocidente passa por um importante momento de transformação, que se deve à expansão do capitalismo financeiro, à globalização da informação, à emergência de novas potências a oriente. E a relação dos portugueses com os chineses vem de longe e transporta, efectivamente distorções identitárias. Se por um lado, o Oriente – basta pensar em Macau ou mesmo Timor – continua a ser uma memória dourada para o país, por outro lado, as imagens construídas foram e são, em muitos momentos, muito negativas e altamente visíveis, por exemplo em alguma literatura. Uma alternância entre a sinofilia e a sinofobia.
Neste momento, e perante a insistência destes rumores, parece-me importante que os responsáveis, nomeadamente o Alto-Comissariado para a Imigração e Minorias Étnicas, preste atenção ao que se está a passar procurando, desde já, estabelecer algumas linhas pedagógicas e de prevenção. De um modo geral, o que estes rumores sobre os chineses que vivem e trabalham em Portugal demonstram é que há um arriscado desinvestimento em medidas – quer políticas, quer culturais, quer comunicacionais ou comunitárias, que promovam a integração das diferentes etnias. O que, convém não esquecer, pode ter consequências altamente prejudiciais quer para as comunidades de imigrantes, quer para o país. O roto contra o nú, aliás, já aí está. Na reportagem do DN, pode ler-se que uma das explicações para os boatos acusa os ciganos.
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