quinta-feira, abril 27, 2006

A Mentira

de Enrique de Hériz vale a pena. Uma saga familiar com uma trama admirável, numa escrita original e com força. Por vezes peca por excesso. Mas perdoa-se face à revelação inteligente e frequentemente impiedosa da traição da memória, da verdade de cada um como uma lenda, da mentira como sobrevivência social e individual, das precárias fronteiras entre imaginação e mentira. Inclusivamente na literatura.
Hériz move-se entre vários registos com grande desembaraço, vai da acção à reflexão agilmente e pontua com ironia quando estamos desprevenidos.
“Mas eu sei que não fica nada. Júlio também o sabia. A única diferença entre nós é que ele o soube antes e resistiu com todas as forças. Cada um luta contra a devastação do tempo com as suas melhores armas. Eu apenas soube opor-lhe a resistência do conhecimento, que é enganosa e débil. Vi a morte vir e refugiei-me nesta sabedoria aparente mas inútil, como quem pretendesse defender-se de um vírus batendo-lhe com um microscópio. Júlio não procurou refúgio. Saiu a campo aberto e postou na primeira linha da frente as armas da sua imaginação. Obuses quando os teve; depois pedras; agora apenas uma cuspidela. Posso culpá-lo por isso? Qual é o seu delito? Inventar-se a si próprio? Então, subo ao patíbulo e ofereço o pescoço à corda. Ainda mais, dou por concedido o indulto, porque pelo menos ele obteve o triunfo final, mínimo se quisermos, mas decisivo. A russa não foi a sua melhor obra. Aproximou-se da perfeição, mas era só um ensaio. A arma definitiva, a sua invenção absoluta, é esta doença que agora o refugia na ausência. Júlio inventou que não é. Quando o seu olhar se perde, quando não é capaz de se lembrar do seu próprio nome e os meus filhos desesperam, eu sei onde ele está. Sei que mundo habita. Um mundo vazio. O auto-retrato da sua lenda. É essa vitória final; que a morte ao chegar encontre o campo de batalha deserto”.