Um café, sff. II
“Em Paris conheço muito bem o itinerário dos autocarros e sei explicar ao taxista o trajecto que desejo seguir. (…) Numerosos lugares estão ligados a recordações precisas: trata-se de casas onde antes viveram amigos que já há tempos que não vejo (…), ou então cafés onde me aconteceram coisas esquisitas: o Café de la Paix, por exemplo, junto à Ópera, onde um dia um estranho vizinho de mesa tentou convencer-me de que o meu físico assentaria bem num casaco igual ao que Yves Montand usava no seu último filme; o Café de flore, onde travei uma fugaz conversa com Roland Barthes, que me contou que, depois de 30 anos como cliente de bar, a empregada da caixa tinha-o visto na televisão e ficou a saber que era escritor e tinha-lhe pedido um livro com dedicatória e ele decidiu- uma vez que ela o tinha visto em algo tão visual como a televisão- oferecer-lhe O Império dos Signos, o seu único livro profusamente ilustrado; o Café Blaise, onde me fez efeito um LSD de uma potência notável e pouco faltou para não ser assassinado por uma namorada muito malvada; o Café Aux Deux Magots, onde sem mais nem menos o arquitecto Ricardo Bofill me disse não sei quantas vezes que era muito mais fácil dar nas vistas em Barcelona, mas muito mais difícil- “como o estou a conseguir precisamente agora”, repetia a todo o momento- triunfar em Paris; o Café La Closerie des Lilás, onde adquiri o hábito de me sentar na mesa noutro tempo habitual de Hemingway e sair sempre sem pagar; o Café Bonaparte, onde acompanhado de Marie-France (travesti tipo Marilyn Monroe que estava a rodar comigo Tam-tam, um filme underground de Adolf Arrieta) vi com grande assombro como um louco furioso entrava no estabelecimento com um martelo e escolhia ao acaso um dos clientes para lhe assentar uma contundente pancada no crânio que o deixou estendido e morto; o café que fica perto do cruzamento da rue du Bac com o boulevard Saint-Germain, onde Perec recomendava que nos sentássemos para observar a rua com um esmero um pouco sistemático e a anotar o que víssemos, o que nos chamasse a atenção, obrigando-nos a nós mesmos a escrever “inclusive o que aparentemente não tem interesse, o que é mais evidente, o mais comum, o mais opaco”. “
Vila-Matas, E. (2005) Paris nunca se acaba. Ed. Teorema.
Vila-Matas, E. (2005) Paris nunca se acaba. Ed. Teorema.
Mulher na Esplanada de um café, Degas
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