quinta-feira, outubro 20, 2005

A tropa ou a SIDA

A propósito da minha posição contrária às Forças Armadas no que respeita à exigência do teste do HIV e hepatites, e que expressei no DN, recebi dois mails de contestação:
"Imagine acesso livre a "doentes" dependentes de drogas,com sida ,homossexuais e lésbicas, obesos e já agora porque discriminar deficientes? Qual seria o resultado? Vejo que andamos sempre a nivelar por baixo..." (F. Lagarto)
e ainda:
"Para mim a Joana está a avaliar mal a situação. Felizmente não tem a vivência de situações extremas. Ora imagine lá uma situação de combate onde o sangue esguicha e banha tudo à sua volta. Para já, só por isso, há o perigo de contágio, para quem está à volta, tenha ficado também ferido ou não. E depois há que ajudar os camaradas feridos. Acha que há tempo ou presença de espírito para calçar umas luvas, pôr uns óculos de protecção ou uma máscara? E isto se houvesse tal equipamento disponível de forma universal entre as tropas. Por muito que lhe custe a política das FA está correcta, aliás deveria ser estendida às Forças de Segurança. E não se compare com outras profissões de risco na área dos cuidados de saúde. Estar em combate não é o mesmo que estar nas urgências ou numa sala de operações. No tocante ao fundamento científico já alguém fez uma avaliação do perigo de contágio nestas condições? (P. Peres)
Portanto, um defende que a exclusão faz parte de um critério mais amplo, o outro que há perigo de contágio em situações de combate.
Em primeiro lugar, não há nenhum motivo para que a infecção por HIV deva ser um critério de exclusão. Ao contrário de uma pessoa com asma, com uma deficiência, etc., um indivíduo portador do HIV (e não com SIDA) encontra-se na posse das faculdades físicas e psíquicas para o desempenho das suas funções nas FA. É o oposto disto que teria que ser provado para justificar a actual prática de exclusão liminar. A infecção por HIV, felizmente, e fruto dos avanços farmacológicos, é um quadro clínico que pode ser estável durante décadas, permitindo o normal e regular funcionamento, sem incapacitação.
Quanto à possibilidade de contágio em combate, é necessário sublinhar que nem todos os admitidos nas FA vão estar em combate. Além do mais, a despitagem do HIV aquando da entrada do candidato apenas pode dar uma falsa ilusão de segurança. Qualquer um pode ser infectado no dia seguinte.
O coordenador nacional da infecção HIV/Sida, Henrique Barros, considera-a uma discriminação: "O problema que se põe é o da razoabilidade dessa discriminação, sem fundamento científico'. Considerando que a questão da aptidão física, determinante no acesso às FA, "se coloca de igual modo a infectados e não infectados" e que "se uma pessoa num dado momento tem as aptidões físicas necessárias deve ser admitida". Não estando em causa o risco de terceiros ("A hipótese de transmissão do HIV, como das hepatites víricas, não se coloca nas situações profissionais") "não faz sentido a eliminação pura e simples dessa pessoa"."Em teoria, a probabilidade de alguém infectado vir a ter problemas de saúde é maior que a de um não infectado, tal como a probabilidade de um fumador é maior que a de um não fumador. E admito que se use o argumento de que um militar está numa situação em que está mais sujeito a expor terceiros ao seu sangue. Mas isso também se passa com os profissionais de saúde, e não impedimos pessoas com HIV de serem médicos."
O hepatologista Rui Tato Marinho concorda. "Esse tipo de situação tem de ser apreciado caso a caso. Do ponto de vista médico e patológico não me faz sentido que se exclua liminarmente qualquer portador dos vírus das hepatites B e C."
Miguel Oliveira da Silva, professor de Ética Médica na Faculdade de Medicina de Lisboa e membro do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida , vai mesmo ao ponto de reputar a exigência das FA como "inaceitável". Para este obstetra, há duas questões éticas em causa a do "consentimento informado" subjacente à realização das análises, já que a sua não aceitação é um factor de exclusão (o que prejudica a ideia do "consentimento"), e a eliminação de todos os infectados. "O Conselho pode e deve debruçar-se sobre esta questão", afirma, lamentando que para tal seja necessário "o pedido de um organismo institucional" - "Devia poder ser um cidadão a requerer o parecer"."Estado dá mau exemplo".
A mesma opinião, mas do ponto de vista do direito, tem o jurista António Garcia Pereira, especialista de direito do trabalho e membro da Associação Portuguesa dos Direitos dos Cidadãos. "A pura e simples exclusão de um cidadão candidato seja ao que for, portador do vírus da hepatite B ou C ou do HIV, só poderia ser justificada caso esteja/seja demonstrado que tal circunstância determinava ou inaptidão para as funções que pretende exercer ou risco para a vida e/ou integridade física do próprio ou de terceiros. Sem tal demonstração, a exclusão pura e simples e à partida afigura-se-me completamente ilegítima."
A Abraço, pela voz de Margarida Martins manifesta a sua indignação e a SOS Hepatites, representada por Val Neto, avalia a ironia da situação (também frisada pelo director executivo da Onusida, Peter Piot). "Isto é, depois das campanhas contra a discriminação uma vez por ano, o bom exemplo que o Estado dá à sociedade civil. Se a filosofia fosse de aproveitamento e não de exclusão, a preocupação das Forças Armadas devia ser pegar nessas pessoas e mostrar para o resto da sociedade que podem e devem ser integradas.
Paula Policarpo, jurista, sublinha o facto de o valor jurídico da tabela tabela de inaptidões e incapacidades das FA (Portaria n.º 790/99), ser "infralegal" (ou seja, inferior ao da lei) e lembra que "neste país existem inúmeros actos normativos - nomeadamente portarias, decretos regulamentares, despachos, etc. - ilegais, e que durante muito tempo produzem efeitos sem serem impugnados".Dá-se a coincidência de ter sido esse o caso da formulação anterior da dita tabela, ou seja, da Portaria n.º 29/89, que incluía a homossexualidade como um impedimento no acesso ao serviço militar , classificando-a como doença mental e como "desvio e transtorno sexual". A inconstitucionalidade da norma (o então provedor de Justiça, Menéres Pimentel, considerou-a "constitucionalmente intolerável") levaria à sua alteração, em 1999.