Alice deste lado do espelho
(Versão modificada da minha crónica publicada ontem no DN)
O mundo de Lewis Caroll é a arte do impossível, entre a lógica e o feérico, o racional e o onírico. Quando Alice passa para o outro lado do espelho, entra num universo imprevisível, com tanto de infinito quanto de claustrofóbico, meio sonho, meio pesadelo. Que tanto desafia a explicação da realidade, quanto a recusa.
A Alice de Marco Martins, filme galardoado em Cannes e que se encontra em exibição, conta a história do pai de uma menina que desapareceu, como acontece com milhares de crianças. É a história de uma perda que, diferentemente das perdas definitivas, instala uma ambiguidade insuportável, uma impossibilidade de validação ou mesmo de verificação. Está viva ou morta? Bem ou mal? Retorna ou desapareceu para sempre?
Mário, obcecado por encontrar a filha, constrói um mundo ordenado, controlador e sistemático. Filma as ruas de uma Lisboa lívida, diária e metodicamente, socorrendo-se da vídeo-vigilância que nos invade e de uma rede de solidariedade pessoal, escondida e marginal. Aí se sublimam o caos urbano e a confusão interna.
O tempo e o espaço, verificados milimetricamente por Mário, são e não são o mundo de Alice. São, porque o tempo está adiado e cristalizado. Subsiste apenas o dia em que desapareceu a filha. O tempo que passa e que vai sendo recordado ao longo da película (passaram 193 dias desde que Alice desapareceu), acabou. Não há nem passado nem futuro, simplesmente esse dia, gerúndio redito todas as manhãs.
O espaço não é mais o espaço de uma cidade viva, de uma casa habitada ou mesmo um espaço emocional heterogéneo. É somente o espaço de uma cidade chumbo, anónima, onde as únicas artérias que perduram são as últimas a que Alice deu vida. Habita-se uma casa-museu e um espaço afectivo de outrora, onde só existe quem não está. Luísa (mãe) e Mário apenas têm o sopro da ausência.
O tempo e o espaço de Mário são o mundo de Alice também porque, não obstante esta organização rígida e contra-relógio, resistem enquanto fundados na fé mágica de que a filha acabará por aparecer, justamente pelas ruas que um dia percorreu, ilesa e intacta. Como se nada se tivesse passado, como se o filme, os dias lentos e magoados de Mário, fosse apenas um parêntesis. Alice há-de aparecer igual, com o mesmo casaco azul.
Mas o tempo e o espaço de Mário não são, por outro lado, o tempo e o espaço de Alice. Esse submundo onde se raptam crianças para as maltratar, violar, prostituir, traficar ou assassinar (o não-dito sempre presente no argumento depurado) tem um tempo e um espaço outros. O tempo onde se suspende a inocência e se interrompe a esperança, um espaço buraco negro, feio, sem humanidade, sem lei ou regra, invisível à face das ruas apinhadas do quotidiano, das rotinas dos empregos e dos transportes. E de facto, Mário e Luísa (ainda) vivem num universo à superfície, por mais ameaçado e ameaçador que tenha passado a ser. Agarram-se a ele como podem, retirando-se da fragmentação e da destruição da dor. Evadem-se dele sempre que possível, escapando para uma frequência distinta, onde talvez Alice exista.
Se Mário é uma personagem plana, no sentido em que se transforma na filha que desconhecemos, é a sua profissão- actor- que lhe confere uma outra dimensão. Se na vida Mário filma e espia, é voyeur; no teatro é espiado. Se na vida Mário é “anjo” ou herói; no teatro é suspeito e áspero. Se a vida de Mário é monótona e repetitiva, a peça que representa (paradoxalmente) é diferente todas as noites, feita de improviso.
Mário é actor, como se não fosse demais sublinhar a marginalidade da sua solidão. Este filme sobre a ausência é também um filme sobre a alienação. As hordas de gente parda que caminha em filas em metros ou em passeios, indiferente aos outros, indiferente à dor, está também indiferente a si própria. É gente zombie, na cidade madrasta que, como Marco Martins dizia numa entrevista algures, nem sequer pára para olhar quando o actor está (mesmo) de joelhos no chão. Nesta cidade não estão apenas socialmente excluídos os toxicodependentes, homossexuais ou sem-abrigo com quem Mário se encontra. Estão todos. Estamos todos.
E Mário passa para o outro lado do espelho no momento em que se vê nas televisões. Em que vê o seu rosto, as suas expressões, o seu desgosto. Em que se encontra consigo próprio, em que se desaliena de si mesmo.
O final do filme é o retorno desse real negligente. Alice não terá vestido um casaco azul. Alice não estará numa daquelas ruas. Alice não irá aparecer. Mário fica, então, irremediavelmente só.
O mundo de Lewis Caroll é a arte do impossível, entre a lógica e o feérico, o racional e o onírico. Quando Alice passa para o outro lado do espelho, entra num universo imprevisível, com tanto de infinito quanto de claustrofóbico, meio sonho, meio pesadelo. Que tanto desafia a explicação da realidade, quanto a recusa.
A Alice de Marco Martins, filme galardoado em Cannes e que se encontra em exibição, conta a história do pai de uma menina que desapareceu, como acontece com milhares de crianças. É a história de uma perda que, diferentemente das perdas definitivas, instala uma ambiguidade insuportável, uma impossibilidade de validação ou mesmo de verificação. Está viva ou morta? Bem ou mal? Retorna ou desapareceu para sempre?
Mário, obcecado por encontrar a filha, constrói um mundo ordenado, controlador e sistemático. Filma as ruas de uma Lisboa lívida, diária e metodicamente, socorrendo-se da vídeo-vigilância que nos invade e de uma rede de solidariedade pessoal, escondida e marginal. Aí se sublimam o caos urbano e a confusão interna.
O tempo e o espaço, verificados milimetricamente por Mário, são e não são o mundo de Alice. São, porque o tempo está adiado e cristalizado. Subsiste apenas o dia em que desapareceu a filha. O tempo que passa e que vai sendo recordado ao longo da película (passaram 193 dias desde que Alice desapareceu), acabou. Não há nem passado nem futuro, simplesmente esse dia, gerúndio redito todas as manhãs.
O espaço não é mais o espaço de uma cidade viva, de uma casa habitada ou mesmo um espaço emocional heterogéneo. É somente o espaço de uma cidade chumbo, anónima, onde as únicas artérias que perduram são as últimas a que Alice deu vida. Habita-se uma casa-museu e um espaço afectivo de outrora, onde só existe quem não está. Luísa (mãe) e Mário apenas têm o sopro da ausência.
O tempo e o espaço de Mário são o mundo de Alice também porque, não obstante esta organização rígida e contra-relógio, resistem enquanto fundados na fé mágica de que a filha acabará por aparecer, justamente pelas ruas que um dia percorreu, ilesa e intacta. Como se nada se tivesse passado, como se o filme, os dias lentos e magoados de Mário, fosse apenas um parêntesis. Alice há-de aparecer igual, com o mesmo casaco azul.
Mas o tempo e o espaço de Mário não são, por outro lado, o tempo e o espaço de Alice. Esse submundo onde se raptam crianças para as maltratar, violar, prostituir, traficar ou assassinar (o não-dito sempre presente no argumento depurado) tem um tempo e um espaço outros. O tempo onde se suspende a inocência e se interrompe a esperança, um espaço buraco negro, feio, sem humanidade, sem lei ou regra, invisível à face das ruas apinhadas do quotidiano, das rotinas dos empregos e dos transportes. E de facto, Mário e Luísa (ainda) vivem num universo à superfície, por mais ameaçado e ameaçador que tenha passado a ser. Agarram-se a ele como podem, retirando-se da fragmentação e da destruição da dor. Evadem-se dele sempre que possível, escapando para uma frequência distinta, onde talvez Alice exista.
Se Mário é uma personagem plana, no sentido em que se transforma na filha que desconhecemos, é a sua profissão- actor- que lhe confere uma outra dimensão. Se na vida Mário filma e espia, é voyeur; no teatro é espiado. Se na vida Mário é “anjo” ou herói; no teatro é suspeito e áspero. Se a vida de Mário é monótona e repetitiva, a peça que representa (paradoxalmente) é diferente todas as noites, feita de improviso.
Mário é actor, como se não fosse demais sublinhar a marginalidade da sua solidão. Este filme sobre a ausência é também um filme sobre a alienação. As hordas de gente parda que caminha em filas em metros ou em passeios, indiferente aos outros, indiferente à dor, está também indiferente a si própria. É gente zombie, na cidade madrasta que, como Marco Martins dizia numa entrevista algures, nem sequer pára para olhar quando o actor está (mesmo) de joelhos no chão. Nesta cidade não estão apenas socialmente excluídos os toxicodependentes, homossexuais ou sem-abrigo com quem Mário se encontra. Estão todos. Estamos todos.
E Mário passa para o outro lado do espelho no momento em que se vê nas televisões. Em que vê o seu rosto, as suas expressões, o seu desgosto. Em que se encontra consigo próprio, em que se desaliena de si mesmo.
O final do filme é o retorno desse real negligente. Alice não terá vestido um casaco azul. Alice não estará numa daquelas ruas. Alice não irá aparecer. Mário fica, então, irremediavelmente só.
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