Só para gulosos
Como já se tornou numa tradição nestes últimos anos, parte dos dias de férias foram preenchidos com idas ao cinema para maiores de 6. Madagáscar, A Marcha dos Pinguins e A Fábrica de Chocolate ficaram a fazer parte do: “E lembras-te daquela cena do Verão passado?”.
O filme de Tim Burton, feérico e agridoce, conta a história de um chocolateiro excêntrico, prisioneiro da infância que jamais gozou e que, perante o medo da morte- que pode perseguir até um ente onírico como Willy Wonka- dá conta que não tem descendência.
O filme é uma receita onde a mistura de açúcar e raiva é exacta, o passado dickensiano e o presente globalizado têm as quantidades certas, o moral da história e o pure entertainment são uma mistura certeira. Tudo acompanhado por musicais imaginosos e cenários psicadélicos.
Dono da maior fábrica de chocolates de sempre, onde os trabalhadores foram despedidos por suspeita de roubo de receitas e misteriosamente substituídos por mão-de-obra barata (paga em chocolate), vinda de países distantes e exóticos, Wonka, num portentoso golpe publicitário, distribuí cinco bilhetes dourados entre os milhares de barras vendidas. Entre os felizes contemplados, que terão direito a uma visita à fábrica encantada e entre os quais será seleccionado um vencedor final (sabe-se mais tarde que para herdar a fábrica e apaziguar a solidão), encontra-se um rapaz humilde e de bom coração. Chama-se Charlie e vive com os pais e os quatro avós, numa casa húmida, de camas apinhadas e onde só se comem couves (o pesadelo de qualquer fedelho que se preze).
Os restantes premiados são uma sátira do “melhor que o mundo tem”, as crianças: uma rapariguinha caprichosa, rica e gananciosa, a Verruga Salgado; uma menina maníaca de pastilhas elásticas, vaidosa, competitiva e egocêntrica, a Violeta Bem-Parecida; um menino-leitão, atafulhado em doces, Augusto Lamacento; e, por fim, um pirralho com o cérebro formatado em ondas electromagnéticas, junkie do sofá, PlayStation e violência, Mike TeaVee. Vêm de países diferentes, como convém na aldeia global.
Dentro da fábrica, que apetece comer, o chocolateiro (representado por Johnny Depp, que numa mesma frase vai ambígua e magnificamente da perversidade à candura) faz o seu Crime & Castigo: cada criança vai perdendo o concurso pelo seu próprio pecado. Os respectivos pais que as acompanham e que, afinal, são os autores dos monstros, pagam também a sua factura. Augusto atola-se num rio de chocolate. Violeta, tentando mostrar que é a rainha da pastilha-elástica, mastiga uma ainda em teste, acabando mole, roxa e parecendo borracha. Verruga, de fato impecável e nariz empinado, acaba por cair e chafurdar na conduta do lixo. Mike, agressivo e tecnológico, acaba por ser diminuído num tele-transportador. Pecados capitais embrulhados em risota.
Wonka, de dentadura impecável e sorriso sombrio tem, ao contrário do conto original, um passado. E claro, quem poderia ser, num gozo delicioso à Psicanálise, pai de um chocolateiro? Um dentista, é claro. Entre os justos medos infantis estão o deitar-se na cadeira, abrir a boca, ver a broca à lupa e atordoar-se com o seu zumbido. Melhor ainda quando o dentista é o sinistro Christopher Lee. Mas, afinal, pai e filho encontram-se, ambos de luvas e fóbicos ao toque, superando as cáries de toda a filiação e a angústia da individuação.
Ricos e pobres, cinzento e cor, adulto-criança e criança adultiforme, são os contrastes do êxito do filme.
Recomendo que não leve pipocas. Prefira uma barra de chocolate.
<< Home