sábado, agosto 27, 2005

Só para gulosos

Como já se tornou numa tradição nestes últimos anos, parte dos dias de férias foram preenchidos com idas ao cinema para maiores de 6. Madagáscar, A Marcha dos Pinguins e A Fábrica de Chocolate ficaram a fazer parte do: “E lembras-te daquela cena do Verão passado?”.
O filme de Tim Burton, feérico e agridoce, conta a história de um chocolateiro excêntrico, prisioneiro da infância que jamais gozou e que, perante o medo da morte- que pode perseguir até um ente onírico como Willy Wonka- dá conta que não tem descendência.

O filme é uma receita onde a mistura de açúcar e raiva é exacta, o passado dickensiano e o presente globalizado têm as quantidades certas, o moral da história e o pure entertainment são uma mistura certeira. Tudo acompanhado por musicais imaginosos e cenários psicadélicos.
Dono da maior fábrica de chocolates de sempre, onde os trabalhadores foram despedidos por suspeita de roubo de receitas e misteriosamente substituídos por mão-de-obra barata (paga em chocolate), vinda de países distantes e exóticos, Wonka, num portentoso golpe publicitário, distribuí cinco bilhetes dourados entre os milhares de barras vendidas. Entre os felizes contemplados, que terão direito a uma visita à fábrica encantada e entre os quais será seleccionado um vencedor final (sabe-se mais tarde que para herdar a fábrica e apaziguar a solidão), encontra-se um rapaz humilde e de bom coração. Chama-se Charlie e vive com os pais e os quatro avós, numa casa húmida, de camas apinhadas e onde só se comem couves (o pesadelo de qualquer fedelho que se preze).
Os restantes premiados são uma sátira do “melhor que o mundo tem”, as crianças: uma rapariguinha caprichosa, rica e gananciosa, a Verruga Salgado; uma menina maníaca de pastilhas elásticas, vaidosa, competitiva e egocêntrica, a Violeta Bem-Parecida; um menino-leitão, atafulhado em doces, Augusto Lamacento; e, por fim, um pirralho com o cérebro formatado em ondas electromagnéticas, junkie do sofá, PlayStation e violência, Mike TeaVee. Vêm de países diferentes, como convém na aldeia global.
Dentro da fábrica, que apetece comer, o chocolateiro (representado por Johnny Depp, que numa mesma frase vai ambígua e magnificamente da perversidade à candura) faz o seu Crime & Castigo: cada criança vai perdendo o concurso pelo seu próprio pecado. Os respectivos pais que as acompanham e que, afinal, são os autores dos monstros, pagam também a sua factura. Augusto atola-se num rio de chocolate. Violeta, tentando mostrar que é a rainha da pastilha-elástica, mastiga uma ainda em teste, acabando mole, roxa e parecendo borracha. Verruga, de fato impecável e nariz empinado, acaba por cair e chafurdar na conduta do lixo. Mike, agressivo e tecnológico, acaba por ser diminuído num tele-transportador. Pecados capitais embrulhados em risota.
Wonka, de dentadura impecável e sorriso sombrio tem, ao contrário do conto original, um passado. E claro, quem poderia ser, num gozo delicioso à Psicanálise, pai de um chocolateiro? Um dentista, é claro. Entre os justos medos infantis estão o deitar-se na cadeira, abrir a boca, ver a broca à lupa e atordoar-se com o seu zumbido. Melhor ainda quando o dentista é o sinistro Christopher Lee. Mas, afinal, pai e filho encontram-se, ambos de luvas e fóbicos ao toque, superando as cáries de toda a filiação e a angústia da individuação.
Ricos e pobres, cinzento e cor, adulto-criança e criança adultiforme, são os contrastes do êxito do filme.
Recomendo que não leve pipocas. Prefira uma barra de chocolate.