Lost in Translation
O Tim tem 14 anos e nasceu nos EUA. A sua mãe era da Alsácia e morreu quando ele tinha 9 anos. Antes de perder a mãe, o Tim passou por vários lares, sempre a entrar e a sair de casa, numa instabilidade assustadora, porque a mãe tinha uma esquizofrenia grave. O pai do Tim, que nunca viveu com a mãe do rapaz, é do Congo e imigrou para os EUA durante a puberdade. Casou-se com uma mulher também do Congo, há cerca de 5 anos atrás. Ambos trabalham e são, aliás, bastante bem sucedidos. Tiveram um filho (meio irmão do Tim) há 3 anos, que nasceu com uma mal-formação muito severa e que, depois de um ano em cuidados intensivos e do enorme sofrimento de todos, acabou por falecer.
Depois de a mãe morrer, o Tim ficou a viver com o pai e com a madrasta, mas há quase um ano apresentou-se sozinho num lar para crianças, acto bastante insólito, dizendo que se recusava a viver com a sua família, pois era espancado e mal-tratado. O caso, naturalmente, seguiu para tribunal e o Tim passou a viver no lar.
Quando a equipa de profissionais do lar é chamada para apresentar o seu relatório da situação, explicam como estão preocupados com o Tim, que se fecha no quarto, fazendo uns “rituais de bruxaria” estranhos, isolando-se dos colegas e pouco comunicando. Acusa o pai de lhe bater e de praticar “feitiçaria branca”. Nesta altura, a equipa, conhecendo a história psiquiátrica da mãe do Tim, coloca a hipótese de ele ser também psicótico e apresenta-se muito inquietada. Na primeira entrevista com o Tim, ele nada fala, comportando-se como a maioria dos adolescentes numa situação de avaliação psicológica. A única palavra que conhece em congolês é N’doki, que significa “criança bruxo”. Os N’doki são comuns no Congo e, na verdade, uma crença cultural muito importante e complexa. Não a descreverei aqui em exaustão, mas importa dizer que as crianças podem ter Kindoki (a feitiçaria) congenitamente ou porque foram iniciadas ritualmente nessa prática. Assim, crê-se que essas crianças têm um órgão ou uma substância (Kundu) que as tornam mortalmente ameaçadoras para as suas famílias e comunidades. Podem ser tratadas através de curandeiros conhecidos como os N’ganga, que podem “exorcizar” e fazer “vomitar a feitiçaria”, através de rituais complicados e que exigem um treino e uma preparação longos e difíceis. Aliás, as Igrejas Cristãs (especialmente evangélicas), em muitos lugares da África Central, fazem também estes rituais de purga. Contudo, às vezes são vistas como “feitiçaria encapotada”, e há uma série de regras culturais para as distinguir, aceitar ou rejeitar.
Depois de a mãe morrer, o Tim ficou a viver com o pai e com a madrasta, mas há quase um ano apresentou-se sozinho num lar para crianças, acto bastante insólito, dizendo que se recusava a viver com a sua família, pois era espancado e mal-tratado. O caso, naturalmente, seguiu para tribunal e o Tim passou a viver no lar.
Quando a equipa de profissionais do lar é chamada para apresentar o seu relatório da situação, explicam como estão preocupados com o Tim, que se fecha no quarto, fazendo uns “rituais de bruxaria” estranhos, isolando-se dos colegas e pouco comunicando. Acusa o pai de lhe bater e de praticar “feitiçaria branca”. Nesta altura, a equipa, conhecendo a história psiquiátrica da mãe do Tim, coloca a hipótese de ele ser também psicótico e apresenta-se muito inquietada. Na primeira entrevista com o Tim, ele nada fala, comportando-se como a maioria dos adolescentes numa situação de avaliação psicológica. A única palavra que conhece em congolês é N’doki, que significa “criança bruxo”. Os N’doki são comuns no Congo e, na verdade, uma crença cultural muito importante e complexa. Não a descreverei aqui em exaustão, mas importa dizer que as crianças podem ter Kindoki (a feitiçaria) congenitamente ou porque foram iniciadas ritualmente nessa prática. Assim, crê-se que essas crianças têm um órgão ou uma substância (Kundu) que as tornam mortalmente ameaçadoras para as suas famílias e comunidades. Podem ser tratadas através de curandeiros conhecidos como os N’ganga, que podem “exorcizar” e fazer “vomitar a feitiçaria”, através de rituais complicados e que exigem um treino e uma preparação longos e difíceis. Aliás, as Igrejas Cristãs (especialmente evangélicas), em muitos lugares da África Central, fazem também estes rituais de purga. Contudo, às vezes são vistas como “feitiçaria encapotada”, e há uma série de regras culturais para as distinguir, aceitar ou rejeitar.
Perante o impenetrável silêncio do Tim e da sua única palavra em congolês, uma das hipóteses que foi colocada, e que se revelou errada, foi a de que o pai pensasse que o Tim era um N’doki, o que explicaria, de acordo com o seu contexto, a morte da mãe e a morte do meio irmão, tanto como os comportamentos estranhos do Tim. Ou seja, se o pai achasse que ele era um N’doki, seria provável que o tivesse sujeito aos rituais dos N’ganga, e daí advir a alegação de maus-tratos.
Contudo, quando o pai, a esposa e o Tim foram entrevistados conjuntamente (recordo que era necessário um relatório para tribunal por maus-tratos infantis) o pai apareceu como completamente distante destas crenças e longe de fazer semelhantes atribuições. De facto, a meio da entrevista, Tim pediu para falar com um dos técnicos à parte e, quando regressou à sala, contou como sua a alegação de que o pai o espancava era mentira e fabricação sua . Contou tudo, confessou e pediu desculpas. O pai, extremamente afectuoso, mostrou-se aliviado e elogiou o filho por ter tido a coragem de contar a verdade.
No Congo, a linhagem é matrilinear. Ou seja, os filhos não são filhos do pai, mas sim dos tios maternos, e a sua família é essa, incluindo os primos e outros parentes dessa linha. Aliás nem sequer existe a palavra família. A palavra que existe é Kanda e que representa esse conceito de linhagem materna. A noção de família tal como a entendemos não tem qualquer sentido para eles. Ora, de acordo com este sistema, o pai não tem qualquer poder ou direito sobre os seus filhos. Quem tem é a família materna. O pai pode “casar” com os seus filhos, expressão que siginifica adquirir os direitos de paternidade, negociando uma espécie de dote com a família materna mas, se assim não for, não é propriamente pai. O pai é pai dos filhos da sua irmã. Claro que esta linhagem só funciona se todos estiverem no mesmo sistema, tal como no nosso só funciona se todos estiverem de acordo com as regras. Porque se uma mulher congolesa casar com um homem de uma linhagem patrilinear (um americano, por exemplo) significa que o tio congolês nunca terá filhos. Os filhos serão filhos do pai biológico americano e o tio congolês que esperaria (de acordo com a sua linhagem matrilinear) que os seus sobrinhos fossem seus filhos, terá que abdicar dessa expectativa/direito.
Assim sendo, Tim encontrava-se num verdadeiro paradoxo: para o Tim ser filho do seu pai (de quem muito gostava e que tinha sido sempre a sua única “base segura”, tendo em conta a terrível instabilidade da sua mãe) significava ser congolês. Mas ser congolês tinha como consequência que não era filho do seu pai, mas sim filho de um tio (irmão da falecida mãe) da Alsácia e que nem sequer conhecia. E se era filho de um tio da Alsácia, então não era congolês mas sim alsaciano.
No Congo, a linhagem é matrilinear. Ou seja, os filhos não são filhos do pai, mas sim dos tios maternos, e a sua família é essa, incluindo os primos e outros parentes dessa linha. Aliás nem sequer existe a palavra família. A palavra que existe é Kanda e que representa esse conceito de linhagem materna. A noção de família tal como a entendemos não tem qualquer sentido para eles. Ora, de acordo com este sistema, o pai não tem qualquer poder ou direito sobre os seus filhos. Quem tem é a família materna. O pai pode “casar” com os seus filhos, expressão que siginifica adquirir os direitos de paternidade, negociando uma espécie de dote com a família materna mas, se assim não for, não é propriamente pai. O pai é pai dos filhos da sua irmã. Claro que esta linhagem só funciona se todos estiverem no mesmo sistema, tal como no nosso só funciona se todos estiverem de acordo com as regras. Porque se uma mulher congolesa casar com um homem de uma linhagem patrilinear (um americano, por exemplo) significa que o tio congolês nunca terá filhos. Os filhos serão filhos do pai biológico americano e o tio congolês que esperaria (de acordo com a sua linhagem matrilinear) que os seus sobrinhos fossem seus filhos, terá que abdicar dessa expectativa/direito.
Assim sendo, Tim encontrava-se num verdadeiro paradoxo: para o Tim ser filho do seu pai (de quem muito gostava e que tinha sido sempre a sua única “base segura”, tendo em conta a terrível instabilidade da sua mãe) significava ser congolês. Mas ser congolês tinha como consequência que não era filho do seu pai, mas sim filho de um tio (irmão da falecida mãe) da Alsácia e que nem sequer conhecia. E se era filho de um tio da Alsácia, então não era congolês mas sim alsaciano.
Tim, um rapaz brilhante, tinha resolvido a questão. Acreditando ele próprio (e não o pai, como inicialmente se supôs) ser um N’doki, criou, na entrevista com os técnicos e com a família, um ritual de expurga da feitiçaria o mais semelhante possível aos verdadeiros. Mas na altura ninguém se apercebeu. Contou, confessou e pediu desculpas. Atormentado pela culpa (da qual tinha zero, mas que no seu pensamento mágico infantil, como é comum nas crianças, carregava) da morte da mãe e da morte do irmão, aprisionado no paradoxo da sua identidade, elegeu na entrevista com os técnicos e a família um suposto N’ganga (um dos técnicos presentes), a quem primeiro confessou para depois “vomitar a sua feitiçaria” com a família.
O Tim é agora caloiro numa prestigiada universidade norte americana, tem uma namorada muçulmana e como projecto ir ao Congo neste Verão e pela primeira vez na vida.
O Tim é agora caloiro numa prestigiada universidade norte americana, tem uma namorada muçulmana e como projecto ir ao Congo neste Verão e pela primeira vez na vida.
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