domingo, maio 22, 2005

Sociedade?

Nas secções “Sociedade” da maioria dos jornais (e em rubricas equivalentes nas televisões), é comum serem apresentadas reportagens sobre Saúde e temas afins. As mais frequentes (e pelos piores motivos- não apenas revelam o pobre país, como também são notícia porque vendem) são sobre crianças e adolescentes (educação, divórcio, sexualidade, abuso, maus tratos, negligência), sobre toxicodependência, idosos, delinquentes, pessoas com VIH/SIDA, homossexuais, prostituição. O mais habitual é este jornalismo ser de muito má qualidade. Vulgarmente as peças são confusas, revelam pouca investigação, limitam-se à consulta de duas ou três pessoas (“os especialistas”). Desconheço se a secção Sociedade é lida por muitas pessoas. Espero que não… Também não sei se para estas missões vão buscar o refugo dos jornalistas, mas às vezes parece. Não terei tempo nem paciência para comentar todas as alarvidades que vão sendo publicadas sobre os assuntos referidos, mas a peça do Público de hoje merece algumas considerações.
A dita reportagem, que faz a capa do jornal, pretende traçar um retrato das Crianças em Risco e dos meios de protecção, em Portugal. Não é a minha área, mas o título chamou-me logo a atenção: “Especialistas temem que maus-tratos a crianças provoquem novas mortes”. Quem diria?!!!
A estrutura do texto é confusa, os “especialistas” consultados manifestamente insuficientes, a investigação sobre a matéria deixa áreas vitais de fora (como a comparação com a legislação, intervenção, medidas e apoios de outros países- que pena que não o tenha feito), não se socorre da opinião de nenhum pedo-psiquiatra ou psicólogo clínico (embora se leiam repetidamente ao longo da peça comentários sobre a importância destes conhecimentos) e tem erros graves.
Por exemplo, quanto aos maus- tratos, os ditos especialistas, identificam os seguintes factores de risco: “Uma maternidade na adolescência, o facto de uma criança não viver com o pai ou com a mãe ou ter vivido um período da sua vida com outras pessoas, o alcoolismo” (Carla Fonseca, procuradora da República no TFM de Lisboa); “conflitos familiares em torno da guarda das crianças” ( Clara Albino, presidente do IRS); “ O perigo para uma criança existe sempre que um pai está ausente, se demite de a amar” (fonte não identificada).
Ignorância e mau jornalismo. Os principais factores de risco podem ser categorizados como relativamente à criança, à família, à comunidade e à sociedade. Aumenta o risco quando a criança é portadora de deficiência, por exemplo. Os principais factores de risco associados à família são o abuso de substâncias (drogas e álcool), pais (ou cuidadores) que também foram vítimas de abuso na infância e violência doméstica. Os principais factores relacionados com a comunidade e sociedade são a pobreza, redes sociais de apoio dispersas ou inexistentes, violência e desemprego
Outro exemplo: as jornalistas concluem que os vários técnicos e profissionais que escutaram estão de acordo quanto à importância do bem-estar psíquico e emocional da criança na tomada da decisão, bem como relativamente ao perfil psicológico dos pais ( “Magistrados dizem que os afectos são o mais importante para decidir a guarda de uma criança”), mas em nenhum momento procuram perceber como, quando ou por quem é conduzida a Avaliação Psicológica, e mesmo perante declarações contraditórias. Para Dulce Rocha, presidente da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco “Em muitos casos era importante fazer uma avaliação psicológica dos pais e da relação que estes têm com os filhos. Deveria acontecer sempre que uma criança viveu um período longo da sua vida com uma terceira pessoa”. Clara Sottomayor, especialista em Direito da Família, afirma que os juízes podem solicitar assessoria técnica, nomear psicólogos para a prova testemunhal e mandar fazer exames pedopsiquiátricos, mas que por vezes não o fazem, por “economia de tempo e meios”. Para Antero Luís, do Conselho Superior de Magistratura “Se fizessem isso tudo estavam desgraçados”. Não se percebe, como também é habitual, o que Dulce Rocha quer dizer com o motivo apontado para a avaliação. O motivo deveria ser sempre que existe uma suspeita de maus-tratos, um ou mais factores de risco, ou violenta disputa da guarda parental. Pelo menos. Em muitos países, a avaliação psicológica é conduzida a pais e crianças, em caso de simples divórcio.
Ainda outro exemplo. Como não conhecem nem se reconhecem (pelos vistos) factores de risco, também não se pode falar de prevenção (que em geral é anedota em Portugal). Portanto, quando na reportagem falam das medidas de prevenção, pouco mais indicam do que a opinião de Fátima Líbano Serrano, da Associação Portuguesa do Direito dos Menores e da Família: “Se as crianças estiverem enquadradas em creches e jardins infantis, a probabilidade de entrarem numa situação de risco é muito menor”. Não se entende. Prevenção de maus tratos a crianças passa por programas para as crianças em risco (pelo menos) para fomentar a sua resiliência (serem capazes de identificar riscos, estabelecer laços seguros, aumentar a adaptabilidade, desenvolverem competências escolares e extra-escolares, fortalecer relações inter-pares e a capacidade de pedir ajuda); programas de apoio às famílias em risco (desenvolvimento de estilos parentais adequados, activação de apoios na família alargada); programas de apoio para combate de riscos sociais e comunitários (acesso aos cuidados sociais e de saúde, emprego, habitação, boa rede escolar, acompanhamento por técnicos/mentores).
Volto a dizer, que são apenas exemplos…muito fica por comentar sobre esta reportagem que faz a primeira página de um dos jornais de referência. Por fim, de assinalar, que a peça evidencia bem a falta de meios da Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (ainda há pouco tempo Dulce Rocha sugeria que este problema se poderia resolver com voluntariado !!!), e os muitos conflitos existentes entre a estrutura central e as locais. Para o juiz Madeira Pinto, do Tribunal de Família e Menores do Porto “A Comissão Nacional não funciona, tem sido um organismo inoperante”. Para além disso, fica em destaque a urgência de mudar a constituição neste aspecto, já que consta que os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais, e a gravosa falta de formação dos magistrados nesta área. Não me esqueço que, em Fevereiro, o governo de Santana decidiu retirar da tutela da Segurança Social (entregando a fundações) as Unidades de Acolhimento e Emergência, desresponsabilizando-se pelos menores em situações de alto risco. Ainda por cima esse “governo” não apenas dava as crianças, como as casas e todas as despesas. Na altura os responsáveis, (inclusivamente Negrão) lavaram as mãozinhas. Depois admiram-se com o aumento dos maus tratos e as “novas mortes”. Fica o link para a crónica no Expresso, da Inês Pedrosa que, de um outro modo, denuncia as hipocrisias.